sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Trilho do Pico da Areia - Lagoa das Furnas / Ribeira Quente - S. Miguel - Açores

 Entre a Lagoa Seca (ou Pico Gaspar) e a Ribeira Quente
(Azores)
Pico da Areia - também conhecido como Pico da Vigia - corresponde, aqui, a trilho pedestre. Esteve à alguns anos marcado como "PR15SMI" nos mapas de trilhos oficiais do G.R. e C.M. mas, após alguma pequena derrocada ou falta de "subsidio europeu" para manutenção dos que o "geriam", ou por outra razão agora não descortinável, foi abandonado.
Este caminho percorre área que foi palco da ultima erupção vulcânica da ilha (1630) e que tornou inabitadas, por quase meio século, grandes áreas de Furnas, Ribeira Quente e Ponta Garça.

A época estival por estas ilhas é, habitualmente, ocupada com algum lazer por entre a natureza pouco "tocada", acompanhada de algum desafio físico ou geográfico.
Dai algumas das razões para a redescoberta, à duas décadas, de antigos atalhos de interligação de localidades e da adaptação (e afectação) de "subsidios" europeus ao seu re-desbravamento e sinalização.


Este, o do Pico da Areia, apesar da beleza do trajecto e da posição estratégica em que se encontra, nunca foi muito divulgado ou frequentado. Desde 2010 que foram removidos os sinais de madeira e abandonados ao tempo os sinais pintados em pedras existentes ao longo do caminho. Presentemente é um trilho oficialmente inexistente, mas que em 2014 continua em muito bom estado.

O trajecto é simples (duas horas para fazer quase 6 Km) mas obriga a ter ideia clara acerca das opções a tomar nos entroncamentos ou cruzamentos que se vão encontrando. O mapa anexo talvez seja uma boa ajuda.

Uma das dificuldades deste trilho é o facto de uma ida e volta ao local de origem desencorajar a maior parte dos "candidatos". A alternativa é deixar o meio de transporte habitual num dos extremos e arranjar boleia de regresso à origem quando chegados ao outro. Como há a possibilidade de entretenimento quer num quer noutro extremo, e como há sempre alguém (com telemóvel à mão) menos motivado para andar, essa dificuldade não chega a se aproximar do inultrapassável.

Grande parte do caminho faz-se à sombra de arvoredo, pelo que faze-lo nas horas de Sol a pique é ainda mais interessante - uma vez que nestas condições o colorido é mais vivo e, eventualmente, as fotos mais luminosas.

 Iniciando o trajecto pelo lado da Lagoa das Furnas, percorre-se parte da crista de cratera antiga, com o vale da Ribeira Quente pela esquerda (foto acima) e Pico Gaspar / Lagoa Seca pela direira (foto abaixo).
 Em baixo, vista, ao longe, do Pico do Bode (Povoação).

 Com o aproximar do Pico da Areia, a vegetação endémica começa a substituir a criptoméria e o incenso.

 Costa da Povoação, ao longe ...
 



 Contornando o Pico da Areia pelo lado nascente entroncamos com o acesso à torre, de onde se avista uma área que vai desde o Pico do Ferro, passado pela Lagoa das Furnas e pelo Castelo Branco, tocando nos Pico da Vara e Bartolomeu e terminando na Costa da Povoação.
Ao fundo, por entre o arvoredo e junto à lagoa, a torre do mausoléu de José do Canto.

 Ao fundo e em baixo, o "Resort" Furnas Lake Villas.


Ao longo deste percurso, e vias confinantes, existe alguma dificuldade em distinguir vias privadas de vias públicas. Provavelmente muitas delas não tem "patrono" ou, então, com o passar dos anos foram sendo tomadas por "usucapião", por omissão/silêncio de poderes públicos, por anexação em antigas arrematações de baldios ou pura e simplesmente por construção privada.
O início da descida do atalho parece ter sido capturada por privado e substituída por alternativa.

Independentemente dessas incertezas e enganos, quem avançar até ao ponto marcado com o n.º 7 no mapa anexo, tem uma rara vista sobre a zona nascente da Praia da Ribeira Quente (Fogo), sobre a Baixa das Cracas (Ponta da Lobeira) e sobre a costa de ligação à Ponta Garça..

Ponta da Lobeira (em baixo, ao centro) e vista para a "Baixa/Baixio das Cracas" e restos rochosos da antiga rocha chamada "Rosto Branco". Ao fundo, ao centro e direira, zona da antiga ligação à Ponta Garça (trilho PR10SMI).


Convêm recordar que este trilho que estávamos a percorrer (Pico da Areia) foi construido para dar acesso (militar?) à Ribeira Quente por terra - e que não era vereda destinada a acesso a pastagens ou terrenos agrícolas que, consequência da erupção, não eram ricos por ali.
 Na foto abaixo - Zona do Fogo e inicio da praia da Ribeira Quente.

A propósito deste caminho e lugar, Gil Moniz Jerónimo, no seu livro “Povo da Ribeira Quente … que Origem?”, escreve o seguinte:



E foi assim que a comunidade do lugar da Ribeira Quente se foi moldando por si mesma, sem quaisquer caminhos de penetração … e sem esperança de alterar a sua lamentável situação, como se não fizesse parte do povo da ilha.

Para atingir este povoado vindo do poente … só existia um perigoso e estreito atalho que partia de Ponta Graça ….”
http://ribeiraquente-historia.blogspot.pt/2008/08/povo-da-ribeira-quente-povo-que-se.html

E continua:

”Por volta de  1830, pertencente ainda o lugar de Ribeira Quente e Furnas ao Concelho de Vila Franca, o contra-almirante Francisco de Sousa Prego, então capitão-geral dos Açores, mandou abrir um caminho de acesso a esta localidade, não para tirar do isolamento o pobre povo da mesma, mas sim para satisfazer, se necessário, estratégias de defesa militar.

Porque o tentou fazer sem autorização dos morgados e grandes latifundiários das propriedades envolventes, nada deixou feito para bem do povo da Ribeira Quente, nem tão pouco algo que pudesse ficar para a posteridade e história deste povo.”

E, em nota de rodapé, acrescentou o seguinte:
Parte desse suposto caminho é referenciado no trabalho dos irmãos BullarUm Inverno nos Açores e um Verão no Vale das Furnas”, acreditando-se ser algo que foi aberto através da zona da Lagoa seca das Furnas. Parte desse traçado foi, por volta de 1993, reaberto pelos Serviços de Agricultura e Pescas do Governo Regional dos Açores. Terminando sobre a alta falésia da Praia do Fogo, à qual o Povo ali chama de Pico Pirâmide, era um impressionante miradouro com vista sobre o povoado da Ribeira Quente, parte poente e nascente. Feito eirado com galhos de vegetação espontânea, por isso vedado, foi abusivamente tomado por "lavrador".”
Dos morgados acima referidos, parece não ser despropositado nomear um, de cujo filho existe mausoléu nas proximidades.José Caetano Dias do Canto e Medeiros (Ponta Delgada, 1786 -1858), pai de José e Ernesto do Canto, rico terratenente e líder do liberalismo vintista na ilha. No contexto da Guerra Civil Portuguesa alojou por duas vezes no seu palacete de Ponta Delgada (atual Tribunal de Contas) Pedro IV de Portugal durante a sua estadia em São Miguel. Foi presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada e o mais influente político micaelense da primeira fase do liberalismo."


Regressado ao Mirante / Torre, parece útil sublinhar que nesta zona, marcada com o n.º 5 no mapa e representada na foto abaixo, confluem 6 caminhos, razão pela qual convem saber qual é o que leva ao atalho de descida para a Ribeira Quente (marca 6 no mapa) e qual o que leva à vista sobre a praia da R. Q. (marca 7 do mapa).
 Vista para poente, com mirante/torre ao fundo.
Vista para SW.
 









 Ilha de Santa Maria, a cinquenta milhas, sobre o horizonte

 Novamente - Furnas Lake Villas, ao fundo.
 
 
 Anjos e Almagreira à vista, na Ilha de Santa Maria.


Pico Bartolomeu, ao fundo, sobre a cratera da Povoação.
 Costa da Povoação.
 Vale da Ribeira Quente.

 Pico da Areia e, ao fundo, para lá da lagoa, planalto da Achada das Furnas.








O atalho de ligação à estrada da Ribeira Quente pode ser mais difícil de localizar do que percorrer. Não está minimamente sinalizado nem tão pouco a entrada se insinua como a opção evidente (existem indícios de alteração do original troço superior) . Todavia encontra-se bem mantido, o que estranhamente contrasta com a sua remoção dos catálogos oficiais e das atenções para com a marcação.
Quer a subida quer a descida podem ser feitas entre meia hora e hora e meia, consoante as pernas ou fôlego de cada um, não havendo necessidade de mapa de percurso pois não existem mais entroncamentos visíveis.



 






Restos de antiga (secular) calçada de pedra.

"Morangos de burro".






 

 Ao longo do atalho ainda aparecem resquícios das marcas de trilho, entretanto já quase apagados pelos efeitos do tempo.
 E continuam presentes, firmes como a vontade (ou necessidade) de quem as construiu, as seculares calçadas de pedra que protegiam da erosão da chuva as zonas mais declivosas do atalho.



Em baixo, tunel da estrada/ramal da Ribeira Quente já à vista. Terminado durante a Segunda Guerra Mundial.
Tuneis da Ribeira Quente
História da Ribeira Quente

Uma das hidroelectricas plantadas ao longo da ribeira.


E aglomerado urbano da Ribeira Quente já ali à vista.


Adivinhem onde está a marca de início de trilho! Como ajuda pode acrescentar-se que é tipicamente pintada de vermelho e amarelo e, neste caso, encontra-se a uns 6 metros acima do nível da estrada com que se intersecta.


Depois do suadouro de quase seis quilómetros, vale a pena uma passagem pelo meio do povoado da Ribeira Quente, prosseguindo até à praia do Fogo.

O interior da zona antiga traz à memória uma Medina do Magreb, com ruelas estreitas como esta Rua Torta. Estreitas mas com vida.



 
 
  Ponta do Garajau.
Casas de veraneio nas margens do inicio do trilho que se dirige à Povoação (Agrião), aqui indicado como PR12SMI
 
 A baia que se vê abaixo (limitada ao fundo pela Ponta da Albufeira) foi, em tempos, terra onde se encontravam, possivelmente, as melhores culturas, vinhas e casas da localidade. Com o passar dos anos (séculos), após 1630, o mar a foi reclamando.

 
Abaixo, Ribeira Quente (Zona da Ribeira) nos Anos 60/70 do Sec. XX.
Foto de origem desconhecida, provavelmente de
http://ribeiraquente-historia.blogspot.pt/2008_08_27_archive.html.

A praia tem tido, nestes últimos anos, areia em área suficiente para satisfazer toda a procura de espaço, que tem sido muita. Para além da proximidade das Furnas e da valia paisagística do local, a temperatura da água beneficia do calor do vulcanismo subjacente.




Há dias em que a luz é especial.
E enquanto uns expõem o "esqueleto" ao sol e tentam carregar as baterias esgotadas nos sedentários meses não estivais, outros fazem pela vida, dedicando-se à profissão típica do local: a pesca.
 
 


A Ribeira Quente é muito mais do que uma praia e destino (ou origem) de um trilho por entre a natureza. Vale bem a pena por lá ficar pelo entardecer e anoitecer e viver/conviver momentos semelhantes aos dos habitantes. A transformação recente tem sido rápida mais ainda se encontra algo de especial, específico e natural neste "periférico ecossistema" humano.
Talvez seja interessante relembrar que este povoado esteve isolado na ilha até 1940, altura em que ficou concluído o actual acesso rodoviário e respectivos túneis. Até ai o acesso era feito por atalhos (agora chamados de trilhos) ou por barco (os que haviam). Só quem experimenta fazer o trilho do Redondo (PR16SMI), aquele que faziam para tomar autocarro para Ponta Delgada na década de 30/40, Vila Franca ou Povoação,  é que se apercebe do isolamento. O trilho do Agrião mostra a dureza da vida dos carregadores/vendilhões de peixe que o tinham de transportar e vender na Povoação. E se imaginarmos que nessa altura as vendas eram trocas tanto por dinheiro como por géneros, concluiremos que na viagem de regresso vinham tão carregados como na de ida.


Assim sendo, é natural que o tempo de isolamento deste lugar tenha deixado a sua pegada. Mesmo que erodida pelos recentes ventos de globalização, incluindo da imagem e informação, ainda alguma luz do passado deste local tremeluz por aqui.

Antes de deixar alguns links acerca deste povoado e sua história, parece ser de algum interesse sublinhar que acotovelados aqui já viveram, em simultâneo, mais de 2400 habitantes (1960/5); mais do triplo da população actual, em relativo isolamento. 
Parece também de interesse referir que, em tempos idos, esta "Fajã" era uma extensão de Ponta Garça e, mais do que uma zona piscatória, foi um "paraíso privado", de vinhas/quintas e veraneio, de proprietários (principais, padres, religiosos/as e nobres estrangeiros) de Ponta Garça ou Vila Franca. O acesso fazia-se pelo trilho aqui indicado como PR10SMI.

Portanto, pelo que parece, a pesca foi expandida aqui nos último séculos (XIX e XX), como forma de suportar a pressão demográfica que se vivia e compensar o roubo de terra que o mar ia fazendo. Nada indica que esta zona tivesse qualquer  vantagem ou privilégio para a pesca, quer relativamente à Vila Franca, quer relativamente à Povoação - o que não tinham era alternativas para alimentação de tantos em tão pequeno espaço.


Notas históricas adicionais sobre a Ribeira Quente

Existem várias fontes que dão alguma luz sobre o que foi a ocupação e vida neste lugar mas a publicação que mais informação parece condensar é a intitulada
Povo da Ribeira Quente … que Origem?", de
Gil Moniz Jerónimo, e o website História da Freguesia da Ribeira Quente, Concelho da Povoação, Ilha de São Miguel - Açores.

Mesmo correndo o risco de repetir o escrito nos links acima, achamos por bem transcrever as seguintes passagens:

"Poucas vezes mencionado pelos nossos primitivos cronistas por ser totalmente isolado devido à sua costa acidentada e por isso quase descontinuada, o lugar da Ribeira Quente logo ganhou a fama de ser um lugar paradisíaco lugar de veraneio com uma recôndita e alongada praia.

O Padre Doutor Gaspar Fructuoso (1522-1591), pai primeiro de toda a nossa História Açoriana, ao descrever no VolumeII do seu Livro Quarto das "Saudades da Terra sobre este lugar, diz-nos:

"Passada a Ponta do Garajau, (Vindo da Povoação), dela até à Ponta de Simão Figueira em uma baixa de um tiro de berço, que se faz antre seu penedo e antre outra ponta chamada Rosto Branco, por ser a mesma ponta de terra branca, onde estão as fajãs que terão cinco moios de terra, que tem vinha e dão pão e pastel, está a Ribeira Quente, de muito boa e copiosa água, por caus que se ajuntam nela as três ribeira das Furnas, sic a Quente e a outra que corre pela fábrica de pedra hume, que se chama Ribeira Que Ferve, e outra chamada Ribeira Fria e alguns regatos pequenos, deles, das mesmas Furnas, e outros de outras partes; na qual ribeira muito pescado, onde com não pequeno gosto e grande passatempo, fazem os principais da terra e alguns sacerdotes e religiosos e alguns nobres estrangeiros, no Verão, grandes e ricas pescarias".

Descrevendo depois a mesma ribeira no Capítulo XLIX do mesmo volume, diz:

"Por esta Ribeira Quente abaixo, meia légua das Furnas, no Cabo do Lombo Frio (que é uma lomba em que a rocha dele, se chama a Felpelhuda, por ter muito musgo e erva), saem desta rocha três tornos de água, perto um do outro, com quantidade de dois côvados antre cada um; o torno do meio é quente, os outros frios.
dali para baixo é a Ribeira Quente tão chã até ao mar, espaço de outra meia légua que vem as tainhas por ela acima até ao Lombo Frio"


Tão chã até ao mar, espaço de outra meia légua", (2,5 quilometros de extensão), é uma afirmação de que o curso da ribeira, desde a sua foz à zona aproximada dos túneis, era uma rica área de pesca.
....
A sua configuração física (da ribeira) veio ao longo dos séculos a ser vária vezes alterada devido às naturais enxurradas, uma delas ocorrida a 7 de Outubro de 1588."
 


ERUPÇÃO VULCÂNICA DE 1630
(Pico Cinzeiro)

 
Segundo o Volume II do Arquivo dos Açores, foram em número de dez narrativas escritas que descreveram o fenomenal acontecimento eruptivo ocorrido nas imediações do hoje chamado Vale das Furnas, no ano acima mencionado.

 Embora nesses escritos existam alguns desencontros quanto ao dia da semana e hora em que tiveram início os primeiros abalos de terra que antecederam a grande erupção sísmica que viria a ser a mais violenta e mais espectacular de todas as crises sísmico-eruptíveis dos Açores, a maioria das narrativas dizem que foi por volta das oito horas e meia da noite do dia 2 de Setembro de 1630, que os referidos abalos começaram e que, à maneira que iam crescendo de intensidade também cresciam em frequência, até que, cerca das duas horas e meia do dia seguinte, 3 do mesmo mês, se deu uma tremenda explosão no lugar de uma cratera que havia sido lagoa, denominada historicamente de Lagoa Seca das Furnas, a qual explosão fez sumir as águas de uma outra lagoa que lhe ficava quase adjacente, as da Lagoa Rasa, que tinha uma profundidade aproximada de 55 metros por dois quilómetros de largura.
  Já feita depois uma só boca que incluia a área das duas lagoas, o fenómeno manteve-se permanentemente activo por alguns dias, espalhando a morte, o terror, o sofrimento e a dor.

Francisco Affonso Chaves, mais tarde, viria a chamar o mesmo de acontecimento explosivo.


O Vale das Furnas - segundo os mesmos testemunhos - que era muito acidentado com profundas grotas e muitas elevações, ficou com o aspecto de uma chã aplanada, sob a qual ficarram soterrados alguns pastores nómadas e muito gado, já que ao tempo só ali existiam, a fazer vida sedentária os religiosos de uma Ordem Seráfica, os quais, desavindos, se puseram em fuga para o lado norte da ilha, deixando o eremitério sob um manto de cinzas e pedra pomes.

Alguns dos trabalhos históricos que narram a medonha erupção de 1630, são muito elucidativos porque muito narrativos em matéria de pormenores que espelham com muita clareza a razão do porquê da salvação dos frades do eremitério do Vale:

"E foi N. Senhor servido que aquelle monte assim arrancado do seu lugar para que não sepultasse (aos eremitas), debaixo de si, cahisse pra a parte do mar aonde sepultou a outros que ali se encontravam".

Depois em outra passagem:


"Ponta Garça, lugar seu vizinho, tendo 100 fogos se vio sem elles por cahirem uns e ficarem outros debaixo da cinza de mais de 30 palmos (6.5m). Deste lugar morreram em diluvio de fogo 115 pessoas".

 Mais tarde, Frei Agostinho de Monte Alverne, o nosso segundo historiador açoriano, autor das "Cronicas da Província de São João Evangelista das Ilhas dos Açores", também muito metódico no pormenor, no Capítulo Décimo do Volume II do seu livro, nos diz, sobre o mesmo acontecimento:

"Nos lugares da Povoação e Ponta Garça não ficou casa em pé, e na Povoação a terra noventa braças entrou pelo mar."

"Três dias inteiros choveu cinza em tanta quantidade, que em muitas partes de trinta palmos (6.5m) ficou a altura".

"Vindo um barco da Ilha de Santa Maria, embaraçado nela, (pedra pomes) não podendo passar, por onde foi necessário os passageiros deixarem o barco a mais de meia légua (mais de dois quilometros e meio) de mar, e virem para terra por cima dela".

Esta surpreendente extensão de pedra pomes lançada sobre o mar, no lado sul, embora nos pareça exagerada, é mencionada por outros narradores fidedignos.



Portanto, tendo o lugar da Povoação Velha e Ponta Garça, sido, segundo os historiadores, as duas zonas mais atingidas pelas matérias projectadas, é lógico acreditar que o lugar da Ribeira Quente, que lhes ficava de permeio, tivesse sido o mais atingido.



As grandes transformações que ficaram vincadamente retratadas, quer na zona da Praia do Fogo ou Praia da Albufeira quer dali à zona da Ribeira, são viva evidência deste acontecimento passado.


PONTA DO FOGO

Assim denominada pelo povo após a grande erupção porque matérias telúricas vivas ali produziram efeitos muito espectaculares que ficaram vincadamente retratados; PONTA DA ALBUFEIRA: - Seu nome próprio na indicação geográfica, porque os corrimentos de terra e rochas descidas do alto entraram nas águas do mar e as fecharam, dando-lhe um aspecto de albufeira conforme nos diz o Licenciado João Gonçalves Homem (1), na sua narrativa do acontecimento:

"Em 4 do dito mês se desfez parte dela (matéria vulcânica), juntamente com uma serra e monte, que se chama Rosto Branco que era mui alto e estava à beira mar, levou ao mar esta rebentação de fogo, vinhas e terras entupindo com elas e pedra pomes e alagando, o mar, e fazendo nele repucho tal, que por onde barcos e navios passavam à vela, agora se passeia toda a gente a pé".
Este referido Rosto Branco - já citado por Gaspar Fructuoso cerca de setenta anos antes no seu trabalho toponímico acerca da Ribeira Quente - é o mesmo fundo rochoso que hoje se vê entre a Praia do Fogo e a Ponta da Lobeira, que era muito mais alto como nos diz o já mencionado João Gonçalves Homem. (Baixa das Cracas ou rochedos mais proximos?)

As terras corridas do Pico das Tesouras em conjunto com os materiais piroclastos (pedra pomes), cobriram as primitivas fajãs "que davam vinho e pão", estenderam-se profundamente sobre o mar, soterrando a alongada praia que ia da Ribeira ao Fogo (não a do Fogo), formando naquele espaço terras que se tornaram muito vegetativas por isso cedo foram tomadas.

Ali nasceram sobre as mesmas terras novas fajãs "onde com não pequeno gosto" continuaram alguns dos anteriores proprietários, seus herdeiros ou outros "principais da terra", a usufruir os mesmos privilégios que já usufruíam antes os seus maiores.

(1) - João Gonçalves Homem foi um dos que narraram o grande acontecimento ocorrido na zona da Lagoa Seca no ano de 1630, e suas repercussões. O seu trabalho está escrito no Volume II do Arquivo dos Açores.


Notas :
Aqueles que na Ribeira Quente habitariam o ano inteiro, antes da erupção de 1630, e cuidavam do "paraíso" alheio, dos "veraneantes", eram, provavelmente, escravos de alguns dos "primeiros" (referidos por Gaspar Frutuoso). 

De notar que, apesar de tal ter sido adocicado nos relatos históricos, esta ilha foi desbravada numa época violenta e brutal, assim como de escravatura (por escravos e condenados). Os primeiros desbravadores/povoadores eram um produto da vida de então; eram predadores e com limitada ou peculiar  consideração pela dignidade e vida humanas.
Rui Gonçalves da Câmara quando comprou a ilha conhecia bem essa instituição (escravatura) e é provável que tivesse trazido da Madeira (das explorações de cana de açucar) os necessários (negros e magrebinos/mouros) para começar a valorizar o seu novo investimento (a ilha). 

Após a erupção esta fajã deve ter ficado completamente coberta por metros de pedra-pomes e, consequentemente, terá estado desabitada, décadas. Mas, mesmo assim, a boa memória da sua ocupação anterior não se evaporou das mentes de Vila Franca e Ponta Garça.


Se escravatura existiu por ali após a erupção, não é fácil confirmar, pois o grande e continuado isolamento do povoado, a habituação dos que lá iam nascendo e o silêncio, porventura calculado, dos maiores/proprietários, e "clérigos", não deixaram rasto seguro. 



Todavia uma coisa parece ser certa: a peculiar atractivamente que este isolado (e quase ignorado) local exercia sobre os "principais da terra, alguns sacerdotes e religiosos e alguns nobres estrangeiros, no Verão" manteve-se ainda por muito tempo após a erupção. E esta expressa referencia a "clérigos", principais, nobres e estrangeiros; a toponímia que ainda por lá se encontra (Outeiro das Freiras e Eira das Freiras) e as conhecidas obrigações de ingresso na vida religiosa que decorriam da "instituição vincular" (morgadios) - permitem-nos imaginar a tentativa de recreação, naquele remoto local, de um "Jardim do Eden", usado em épocas de "veraneio", longe de olhares e julgamentos alheios. E para que assim se mantivesse (reservado), escravo de lá - lá tinha de permanecer - em silencio, e resignado com aquele estatuto,  realidade e serviço.



Cronologia Genérica do povoado da Ribeira Quente.


1351 - O "Portulano Mediceo Laurenziano" representa, pelo menos parcialmente, o arquipélago dos Açores.
1427 - Diogo de Silves nos Açores.
1431 - Gonçalo Velho Cabral (Comendador da Ordem de Cristo), passou pelos ilhéus das Formigas.
1432 - Ocupação (mesmo que ainda temporária) da Ilha de Santa Maria.
1439 - Erupção do Pico Gaspar / Furnas (1939/43)

1444 - Ano do inicio "oficial" do povoamento da ilha de S. Miguel, sendo Capitão do Donatário Gonçalo Velho Cabral (ou o sobrinho, João Soares de Albergaria).
1474 - Rui Gonçalves da Câmara (de Lobos/Madeira), filho de João Gonçalves Zarco, compra/toma posse da ilha de S. Miguel, trazendo abastecimento de escravos africanos e árabes.
1522 - Terramoto, corrimentos e destruição de Vila Franca do Campo.
1563 - Erupção do Pico Sapateiro (Ribeira Grande)
1580 - Gaspar Frutuoso (1522/91) refere a Ribeira Quente como local de veraneio dos "principais da terra, alguns sacerdotes e religiosos e alguns nobres estrangeiros".
1582 - Batalha Naval de Vila Franca (entre forças afectas ao Prior do Crato e Filipe II de Espanha).
1588 - Grandes cheias nas Furnas (7/10) referidas por Gaspar Frutuoso.
1630 - Erupção do Pico Cinzeiro e arrasamento da R. Quente, assim como partes de Ponta Garça e Povoação.
1652 - Erupção do Pico do Fogo.
1665 - Construção da 1ª Ermida da Ribeira Quente.
1705 - Ermida vistoriada.
1753 - Ermida novamente reportada em vistoria.
1760 - Expulsão dos Jesuítas dos Açores e Portugal.
1797 - Referencia à existência dum vetusto castelo (forte) na Ribeira Quente.
1797 - Construção da 2º Ermida/Igreja.
1831 - Autorização de construção de sacrário no novo templo.
1836 - Posteriormente a 1836 foi construído Caminho/atalho do Redondo (PR16SMI).
1839 - Ribeira Quente deixa de ser lugar da Ponta Garça/Vila Franca e passa a parte integrante do Concelho da Povoação.
1900 - Tempestade marítima roubou nova área à localidade e destruiu 2ª Igreja, cemitério e casas anexas (v. Canada da Igreja Velha).
1910 – Implantação da Republica.
1911 - Inicio da construção da 3ª Igreja.
1917 - Conclusão da construção da 3ª Igreja. A 22/9/1917 Bispo foi à inauguração em barco a remos, a partir da Povoação.
1928 - Construção da "Nova Estrada" (junto à rocha) por ter destruído o mar o antigo acesso da Ribeira ao Fogo, junto ao mar.
1931 - Já havia uma escola primária improvisada (em casa particular) e um posto de correio num estabelecimento comercial.
1932 - Grande abalo sísmico (5/8) com grande destruição.
1935 - Inicio da construção do primeiro túnel do ramal de ligação das Furnas à Ribeira Quente.
1936 - Construção de controverso mercado do peixe, pelo Município da Povoação, com adição de novo imposto (7% acrescido aos 10% já em vigor).
1939 - Tempestade marítima levou área significativa da localidade, entre Fogo e Ribeira.
1940 - Inauguração dos túneis (11/8) e, consequentemente, do Ramal rodoviário de ligação à "Ilha".
1940 - Na R. Quente continuava a não existir água potável, iluminação publica, escolas ou caminhos (apenas atalhos).
1941 - Correio continuava a ser levado/trazido, a pé, diariamente, pelo atalho do Redondo.
1941 - Existiam aproximadamente 396 fogos/habitações e 1800 habitantes.
1941 - Ribeira Quente ganha o estatuto de freguesia.
1943 - Existiam aproximadamente 407 fogos/habitações e 1943 habitantes.
194? - Frota industrial de pesca da ilha inicia articulação com Ribeira Quente (mão de obra).
1945 - Criação de posto de Registo Civil. Escola primária funcionava no barracão do peixe (o da discórdia).
1947 - Abertura de Escola, do caminho que liga a traseira da Igreja à Praia do Fogo e de lavadouro publico abastecido por nascente local.
1950 - Visita de Ministro das obras publicas e construção de paredão da Ribeira.
1952 - Forte abalo sísmico (26/6), com destruição vária.
1960 - Existiam aproximadamente 441 fogos/habitações e 2236 habitantes.
1965 - Ribeira Quente atinge os 2421 habitantes e a maior densidade habitacional do arquipélago.196? - Energia eléctrica?
196? - Transporte publico rodoviário de passageiros regular?
1965 -Começa a notar-se o êxodo da população, dirigindo-se para os EUA, em consequência da abertura concedida associada à erupção dos Chapelinhos. Nos 5 anos seguintes perdeu 560 habitantes.
196? - Instalação de cinema (funcionava ainda nos anos 70). Ainda existe o edifício, abandonado, no topo da rua confinante e a poente da ribeira.
1997 - Escorregamento de terras (31/10) com destruição e 29 mortos.
2000 - Frequente discussão pública sobre a possibilidade de abertura de novo/alternativo acesso rodoviário à Ribeira Quente (a partir de P. Garça - ou Agrião)
2001 - População da Ribeira Quente rondando os 798 habitantes.
2005 - Construção/Inauguração? do porto de pescas da Ribeira Quente, obras complementares da via marginal, estacionamento e estruturas balneares da praia do Fogo.

 
Fotos antigas várias.

Sismo de 1932

 

 

 

 
 Abaixo, praia da Ribeira Quente nos Anos 60/70.
Foto de origem desconhecida.


Abaixo, Ribeira Quente (Zona da Ribeira) nos Anos 50/60 do Sec. XX.
Foto de origem desconhecida, provavelmente de
http://ribeiraquente-historia.blogspot.pt/2008_08_27_archive.html.

Varagem de barcos de pesca no antigo porto, junto à ribeira, nos anos 60 do Séc. XX.
 

  Anos 20 do século XX?

Construção do Tunel.
  Tragédia de 1997 (Corrimento de terras)

 
 
 
 
 
 
 

Mapa Geral

Ligação a "Périplo" pelo Trilho da Praia da Amora (Ponta Garça), denominado PR10SMI.
http://flaviusvb.blogspot.pt/2008_08_01_archive.html


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